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Francisco Cartaxo

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Binóculo mágico

10/09/2017 às 10h48

Binóculo mágico - Por: Francisco Frassales Cartaxo

A vizinha de frente nunca olha o ninho do bem-te-vi. Eu a vejo bem cedo molhar e borrifar as plantas na varanda de seu apartamento. Limpa o chão, arruma as cadeiras em torno da mesa, passa um pano úmido. Esfrega com calma o parapeito oval e estreito. Só consigo vê-la no terraço ou na nesga de sala que fica ao alcance do meu olhar curioso. Outra hora, a mesa fica coberta de papéis. Seriam provas? Na tranquilidade da noite, sem o barulho da rua, ela corrige erros e atribui notas, penso.

Alimento mais ainda o meu ócio.

Não, os papéis são grandes para serem provas escolares. Uma planta? Pode ser uma planta aberta sobre a mesa, ela a analisar traços, sinais, figurinhas, proporções de espaços, problemas. Ah, é arquiteta! De pé, ela procura ângulo apropriado para enxergar melhor. Não vejo bem. Pode ser a planta de uma casa, um apartamento, terreno, loteamento… E se for uma praça? Uma rua? Um bairro? A cidade toda? Não distingo. Talvez seja engenheira. Pode ser. Aquela folha de papel, imensa à distância de meus olhos, quem sabe, o croqui de uma galeria pluvial, uma ponte, rodovia. Ah, sei lá.

Desisto de especular. Contenho a imaginação. Só quero observá-la, ali na varanda, de roupa caseira, de short, a cuidar do alpendre do grande apartamento onde mora. Grande de verdade, muito embora eu não o conheça. Ora, o prédio abriga um apartamento por andar, logo tem espaçosos ambientes.

Tudo isso para uma pessoa só.

Uma mulher ainda jovem. Difícil garantir que é bonita. Feia ela não é, seguramente, ainda que só avalio de longe, como faço agora de manhã bem cedo, o sol mal avermelhando as nuvens. Bobagem, feia e bonita são conceitos subjetivos, não enquadráveis em padrão universal único. Bonita. É uma mulher bonita. Seria Maria? Ou Carolina? Deixa pra lá…

Que faz uma mulher bonita morar sozinha?

Nem sequer sei o nome, como posso ter a petulância de lhe conhecer razões íntimas? Martela em minha mente, no entanto, a “presença” dessa mulher tão cuidadosa com as plantinhas, a varanda e tudo o mais. Daí meu desejo de ter um binóculo. Não um binóculo qualquer desses de plástico que a gente dá de presente aos netos. Nem aqueles usados por rapazes e moças, e velhos também, para xeretar a intimidade da vizinhança. Não quero um binóculo profissional, arma sofisticada nas mãos de guerreiros modernos, capaz de enxergar à noite o inimigo no oco do mundo. Nenhuma dessas lunetas me interessa.

Quero um binóculo mágico.

Um que aproxime as pessoas. Que as ajude a comunicar-se. Cada qual a olhar nos olhos da outra, em revelações da alma, dirimir mil dúvidas impostas pela separação física. Um binóculo capaz de abrir um canal de conhecimento mútuo de pontos da ciência e das artes. Ou até para as coisas banais, de que duas pessoas carecem na rotina de suas vidas, de suas almas. Canal capaz de impelir humanos ao aconchego, como faz o casal de bem-te-vi, se isso for o desejo. Desejo de dois viventes.

Sonho ter esse binóculo um dia.

Ah, se chega esse dia! Eu ficaria então bem pertinho da mulher só, que cuida das plantas, que limpa o chão, que arruma as cadeiras da varanda, que corrige provas escolares ou examina traços e proporções de retas e curvas numa planta, ah, nesse dia, com meu binóculo mágico lhe falaria em jeito meigo de quem a conhece há um tempão:

Ei, psiu, veja o ninho de bem-te-vi… bem aí na árvore em frente da sua varanda, quase ao alcance da mão!

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim foi secretário de planejamento do governo de Ivan Bichara, secretário-adjunto da fazenda de Pernambuco – governo de Miguel Arraes. É escritor, filiado à UBE/PE e membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Autor de, entre outros livros, Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim foi secretário de planejamento do governo de Ivan Bichara, secretário-adjunto da fazenda de Pernambuco – governo de Miguel Arraes. É escritor, filiado à UBE/PE e membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Autor de, entre outros livros, Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero.

Contato: [email protected]

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